Mensagem de Rachel, residente na Casa Transitória Maria Luiza
Outubro, 2025.
Queridos irmãos,
Escrevo do coração, e talvez por isso, escrevo como quem se despe — sem luxo, sem aparência, sem esconderijo.
Chamo-me Rachel, e desde 2002 estou internada na Casa Transitória Maria Luiza.
Quando encarnada, nada me faltou. Tudo em mim respirava abundância: as roupas, as viagens, os perfumes, os carros, as festas. Eu vivia cercada de conforto e de facilidades. Mas dentro de mim havia um deserto.
Nunca precisei arrumar uma cama. Nunca precisei buscar um copo d’água. As mãos que me serviam não eram vistas por mim — e, sem perceber, fui me tornando alguém incapaz de agradecer.
Tive acesso à melhor escola, estudei línguas, viajei pelo mundo. Aprendi a falar francês e inglês, mas nunca aprendi a falar com Deus.
Sabia conversar sobre moda, política, cultura, mas não sabia ouvir uma dor.
Era admirada, mas não era amada. Cercada, mas profundamente só.
O verbo da minha vida era ter. Ter mais. Ter o melhor. Ter sempre. E o resultado foi um vazio tão grande, tão gelado, que nenhum luxo conseguia aquecer. Eu não sabia, mas estava morando dentro de uma ausência.
O suicídio, quando veio, não foi ato de coragem nem de loucura. Foi desespero de quem já não sabia sentir. Eu morri tentando parar de doer. E descobri, tarde, que a dor que me destruía era a falta de sentido — o vazio de não ter feito nada útil da vida.
Aqui na Casa Transitória, o primeiro choque foi ver o quanto a facilidade me adoeceu. Tudo me era dado, e isso me tirou a alegria de conquistar.
Nunca lutei, e por isso, nunca cresci. Nunca precisei trabalhar, e por isso, nunca descobri o valor do esforço. Nunca passei necessidade, e por isso, nunca aprendi a agradecer. Nunca fui contrariada, e por isso, nunca aprendi a amar.
Hoje compreendo: as privações são bênçãos disfarçadas. O trabalho é remédio. A simplicidade é abrigo. O pouco, quando bem vivido, vale mais do que todo o luxo do mundo.
Tenho aprendido, lentamente, a servir. Arrumo camas, lavo copos, ajudo na cozinha, visito crianças recém-chegadas. A princípio, parecia humilhação. Agora vejo: é cura. Cada gesto pequeno me devolve a mim mesma. O copo que levo à mesa traz em si um pedacinho da minha alma reconstruída.
Quero deixar-lhes um pedido: não tenham medo da simplicidade.
Não desprezem o trabalho. Não fujam das dificuldades. Elas são as escolas da alma. O conforto é bom, mas quando se torna dono de nós, nos adormece. E nada é mais perigoso do que uma alma adormecida no excesso.
A beleza da vida está em aprender, servir, sentir, partilhar.
E o maior luxo que existe é ter paz — paz conquistada com esforço, fé e humildade.
Hoje, não tenho mais nada do que tinha na Terra. Mas tenho o que nunca tive: sentido.
E com isso, tenho tudo.
